20120124

Há sortes assim

Ouvia hoje a TSF pela manhã quando, sem anúncio ou justificação, o seu director - Paulo Baldaia - entende servir-se da prerrogativa que em Portugal é dada aos directores de Media de se constituirem comentadores privilegiados em horário nobre. Sem contraditório algum, sem enquadramento, sem imparcialidade. Deve ser bom, isto, de ser-se director de um Media e poder, sem problema ou consciência, fazer a defesa do que se quiser. Desta vez coube o brinde a Cavaco Silva, que "não foi claro", que "não quis dizer o que disse" (portanto, a prerrogativa estende-se a transmissão de pensamento), que "ficou fragilizado". Há sortes assim.

Cavaco Silva está longe de ser irresponsável. Coisa diferente é ser, cronicamente, irresponsabilizado. Faz parte da condição de homo politicus em Portugal, ter sempre da parte dos outros o benefício da dúvida, segundas, terceiras, quartas, enésimas oportunidades. Por defeito, por hábito, por pura estupidez ou conformismo, vamos (quase) todos desculpando, na pior tradição catolicazinha, as falhas de quem nos falha, os insultos de quem os insulta, os desrespeitos de quem é pago para representar-nos com respeito. Quase todos alegremente nesta grandiosa viagem de estudo pelas falhas graves do nosso sistema político como quem, à saída, guarda recordações que de pouco servirão para o futuro. Assim, alegres e contentes, satisfeitos e assegurados da ordem normal das coisas, ou seja, de que algumas famílias continuarão "sem instabilidade" a jogar entre si lugares de poder durante partidas de golfe e almoços faustosos, continuamos também a perseguir a cenoura na ponta da cana, distraídos face a tudo o resto. Há afirmações, crimes, atitudes, que só são verdadeiramente consequentes quando pequeninas: se forem suficientemente grandes, parece que pensamos não serem do nosso universo, do nosso plano, mas do "deles", e que assim, nada sendo connosco, não deve merecer-nos a atenção do tempo e do gesto. Há sortes assim.

Em países onde os eleitores têm consciência do seu dever cívico, em países onde os eleitos têm a mais elementar vergonha na cara, o "mais alto dignatário do Estado" reconhecia o carácter vil e insultuoso da comparação que fez com pensionistas de vidas absolutamente miseráveis nas quais pagam mais de medicamentos do que recebem de pensão, e demitia-se antes de ser demitido. Assim como os directores dos media recordavam aquilo que aprenderam de ética, de deontologia, de imparcialidade, e demitiam-se. Isto, claro, considerando que têm sequer formação em alguma dessas coisas, o que em Portugal também se perdoa com assinalável regularidade. Há sortes assim.

Mas isto sou eu, que espero que os adultos ajam como adultos, que tenham memória e "sentido de responsabilidade" (que é mais ou menos o mesmo que sentido de ridículo). Querem ser europeus? Comecem por imitar a auto-crítica. Sem ela, não podemos queixar-nos da nossa sorte. Somos o que permitimos que nos seja feito.

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